Luiz Augusto Passos *
É necessário ainda repetir: política é coisa da terra e feita por humanos. Não é coisa de anjos e deuses. Vale o que dizia brutalmente, Pascal: quem quiser se fazer de anjo, acaba se fazendo de besta. Políticos que somos temos limites. A ação política é inerente e imanente, não transcendente. Tem alcances inimagináveis, mexe com o poder, com o destino da polis, vale dizer dos seus habitantes. Se não nos permite fazer operações e cirurgias em um campo completamente asséptico, também não se pode fazê-la no esgoto (Geertz). Até porque de maneira radical, de um cano de esgoto não se pode beber uma gota de água pura (Antonio Callado).
Política é prática de se fazer humanidades
Ao falar de humanidade não pressupomos o estigma da ideologia moderna que apreende e compreende o humano como perversidade radical. O apóstolo Paulo, em Filipenses (2,5-11), define Jesus como humano em tudo, menos no pecado. E, não erra. O pecado nunca foi humano, é desumano. Boff dizia com perspicácia acerca de Jesus: "Humano assim só podia ter sido Deus!" A humanidade inda que em condições degradantes pode desenvolver-se em direção a condições éticas, pelo protesto e revolta, instaurando a denúncia da opressão sofrida. Instaurando a vida coletiva na direção do Cogito anti-cartesiano de Albert Camus: "Eu me revolto, logo nós existimos!" (O Homem revoltado). Reconduzir-se pela dignidade humana no limite. No sentido que fala Jung Mo Sung: ‘O sujeito é uma ausência que grita..."
Política é parturizar o coletivo humano
Se não tem lados definidos de interesses previamente dados, porque podem ser muitos os caminhos e os objetivos, tem que estar, para ser ética, do lado da humanidade. Numa sociedade de exclusão, onde mercadoria fetichizada substitui a liberdade dos seres humanos - nos embrutece - não há omnilateralidade, posição eclética ou neutra. Fazer-se ético implica em assumir a luta conflitiva contra os processos de exclusão da humanidade e contra todos os aliados que pretendem manter esta exclusão. Por isso, política e democracia são territórios de conflitos.
A pior ideologia acerca da política é aquela que pressupõe o caráter científico e inerrante, ou o caminho do ‘politicamente correto’. Esta posição perde o chão das duras realidades e do sofrimento em carne, e padece do discreto charme da burguesia, de sobrevoar o campo da luta com megafone, de longe, gritando: - "Agora todos para lá... agora todos para cá: pretendendo dar a direção à massa imbecil!" Reproduz certo general sem rosto na guerra do Paraguai, que no fragor da batalha gritou: "Soldados, levantemo-nos e ide!" - vanguardas da modernidade iluminada, de direita e esquerda, das quais Touraine registrou: "Vivem em bolhas de vidro!"
Um ancião gracioso - antigo ex-senador - invadiu em 1987 a Secretaria da Justiça em Cuiabá com um ‘bordão’ que devia obsessivamente repetir todos os dias, em altos brados: "Precisamos de um homem! Precisamos de um homem para salvar este país, um homem para salvar o Brasil!" Imaginei-o de lampião na mão caminhando na Grécia... Ele não era e não seria o único a sonhar desta forma! Um articulista famoso, há poucos dias dizia neste mesmo espaço do Em Aberto que o fracasso do PSDB era o ‘Príncipe’ - indigitando FHC - e evocava sua comparação na obra de Maquiavel. Convenhamos que é um equívoco quase ‘maquiavélico’ uma análise unicausal em política! Também não é Lula "a" salvação ou "a"desgraça de qualquer coisa. A história ou a barbárie somos todos nós, cara pálida! É bom ler o medievalista Lefebvre dizendo que não era Lutero, nem Boccacio, nem Maquiavel que falavam nas obras críticas do seu tempo, neles gritava uma cultura, uma mentalidade de uma época à qual emprestavam suas obras. Sou responsável pelo que ocorre do outro lado do mundo e no Oriente Médio, isso me eleva ou degrada minha humanidade como cidadão da terra.
Ademais, nenhum de nós pode transferir - e, aqui, lembro Spinoza, de novo - sua responsabilidade cidadã de controle político e de governo, a representantes ou a quem quer que seja que pudessem vir a exercer legitimamente o governo por nós e em nosso nome. Por isso, depois de termos alienados, dançado e cantado ao som da música dos outros, somos meninos travessos e incoerentes, se responsabilizarmos unilateralmente o que os outros fizeram por nós e, sobretudo, por aquilo que os outros deixaram de fazer por nós. FHC é perigoso precisamente porque não está só, é uma legião, pergunte a Serra, Alckmin, Antero, Rede Globo, aliados e correlatos dentro e fora do país! É disso que fala Paulo em Coríntios, que nossas lutas são contra forças visíveis, mas contra tronos, dominações, espíritos dos ares... O que Marx chamaria do éter de uma época..., encarnado materialmente, - desculpem o pleonasmo - em mais-valia.
Vivemos uma cultura política maniqueísta, costumamos sonhar com processos nos quais a arena política está circunscrita a um Armaggedon - uma apocatástase um acerto de contas final -, onde o cotidiano e o presente não contam; e, além do mais, a vida concreta nossa diária é desqualificada, por uma ação trans-histórica de decisão preternatural de poderes exteriores à nós. A vitória final será definida pelo enfrentamento entre Patrulhas de Bem Absoluto contra Patrulhas do Mal absoluto. Isso nos induz à passividade ou ao voluntarismo. É bom corrigir isso lendo, de novo Spinoza, que assevera que a política (viu, Heloísa Helena?) não se dá no pensamento, não é sequer de todo pecadora e demoníaca, mas também não é de todo santa e imaculada. Longe dos arcanos celestes, a política pertence aos limites do mundo, onde bem e mal circulam em todos nós, e nos confundimos todos em suas flexíveis e cambiantes fronteiras ígneas.
Em política, como em tudo mais, jamais estamos fora; imersos, nela, somos cosmos & caos. Não é ruim sua impureza e contraditoriedade: isso a dinamiza. Há talvez um único inconveniente e um grande perigo nisso, o de que o bem, por decreto, esteja sempre só do meu lado; e, todo o mal esteja sempre e completamente do lado dos outros: a terrível e perversa dicotomia do nós e o resto... É desta posição que surge a política cátara da malvadeza e o discurso principalista: aquele que se assume a missionariedade de, em Cruzadas em nome de Deus vencer os bárbaros; e, justamente, porque pretende tudo saber e poder fazer, efetiva e demagogicamente, e apenas por causa disso mesmo, na prática oprime e jamais funciona!
Política é a articulação do possível com os incompossíveis. Para política ser o que é, há que se mapear no concreto pela viabilidade. Essa a sua essência! O discurso esplendoroso do ideal, precisa continuar provocando e antecipando manhãs ensolaradas entre os menestréis da utopia, mas não podem reivindicar plena verdade senão quando formar o arco-voltaico da tensão com a terra, e sua utopia transmutar-se em projeto vivo de todos para todos. A verdade - vale Marx! - está do lado da práxis, que supõe mãos no barro e liberdade nascendo. Desconfiamos das palavras, e relemos com o povo que de intenções está cheio o inferno! Por que não recordar Pascal, de novo, de que nunca se faz um erro tão grande, quanto se faz com boa vontade?
Por fim, quem assumir o poder no país estará a serviço do pecado e do mal para convocar todos nós na tarefa de co-tecermo-nos como humanidade. Isso não é tarefa para D.Quixote e Sancho Pança. Terá de esvaziar-se de qualquer grandeza. Terá que se despir da prepotência. Terá que abandonar saltos altos e revestir-se da humildade socrática sabendo que nós todos juntos somos muito melhores do que a soma de cada um.
Quem assumir, não estará a salvo de grandes conflitos. Lembrar Rosa de Luxemburgo que a grande tarefa política revolucionária emerge de um conjunto de reformas substanciais. É preciso assumir, contudo, a prática dos limites. Voar de reformas institucionais, formais, ainda que necessárias, para o campo do poder exercido pelos movimentos sociais, onde existe poder político vivo, de fato. Deverá descer, ademais para o campo da linguagem e do atrito (Wittgenstein). Deverá articular processo e projeto, sonho e história, mediando toda ação política pelos interessados nelas.
Precisaremos de um governo de todos na terra, não no distante Olimpo. O governo das caravanas, colado ao povo: sozinho não resistirá! A grande força vetorial está nos mais sofridos, que continuam a reboque de processos de prestidigitação, que incluem os indígenas, os sem-terra, os que sofrem a condição de trabalho escravo contemporâneo, o povo que reage contra o extermínio, enfim onde continuam a vigir grandes catacumbas da cidadania. Quero lembrar, enfim, que o governo que virá deverá escutar o recado do saudoso monge trapista Thomas Merton, que, traduzindo o monge taoísta Tchuang-Tzu, escrevia: "É fácil voar, o difícil é andar na areia sem deixar rastro". passos@ufmt.br
* Filósofo. Doutor em Educação. Membro do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação / Pós Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso
Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=30689